Camilla Costa*
O baiano Renê Pereira, de 36 anos, descreve diversas vezes a sua trajetória meteórica no remo paralímpico como "comprar uma briga". Do amadorismo até uma final na Rio 2016 - em que foi o único latino-americano entre os melhores do mundo em sua categoria - foram apenas dois anos.
Mas, com o fim dos Jogos do Rio, sua possibilidade de disputar medalhas em Tóquio 2020 ainda é incerta, assim como a de outros atletas, que reclamam de falta de investimento.
"Estar no Rio era algo que eu queria fazer, com ou sem apoio. Gastei cerca de R$ 50 mil no processo. Tive alguns incentivos, mas ainda não tenho nem local adequado de treino", disse à BBC Brasil.
"Acho que representei bem o país, e o carinho das pessoas me deu a sensação de dever cumprido. Mas, sem apoio, acho que não consigo ir a Tóquio. Não quero mais brigar como eu briguei."
O investimento no esporte paralímpico aumentou consideravelmente nos últimos anos - para os Jogos do Rio, por exemplo, beirou os R$ 400 milhões. Não coincidentemente, o país tornou-se uma das potências mundiais do esporte, e os atletas fazem, em casa, sua melhor campanha em Paralimpíadas.
Mas Renê precisou lançar uma campanha de patrocínio coletivo na internet, pensando em sua permanência no esporte após os Jogos. A três dias do fim do prazo para as contribuições, ainda não tem o total de recursos necessários para, de acordo com seus cálculos, garantir "a qualidade mínima de treino".
Treinando num clube sem histórico no esporte, em Salvador, e arcando com a maior parte dos custos de se tornar um atleta de alto rendimento, ele se esforça para acreditar que o sexto lugar na Paralimpíada foi uma vitória.
"Meu sonho de estar na Paralimpíada eu já consegui realizar. Mas sou competitivo, não gosto de perder. Queria estar ali brigando realmente pelas medalhas", disse à BBC Brasil.
Na pele do paciente
Em 2006, Renê fazia residência médica em ortopedia quando, de repente, começou a sentir fortes dores na região da coluna.
"Em uma das minhas entradas no hospital, levantei da maca para ir ao banheiro e percebi que estava sem o movimento da perna esquerda", relembra.
O diagnóstico de abscesso na medula só veio horas depois, quando as duas pernas já estavam comprometidas. Após uma cirurgia, ele descobriu que o dano era permanente.
"Percebi que tinha seis anos dentro de uma faculdade de Medicina e não tinha noção de o que era estar na pele de um paciente. Foi difícil não ter as respostas de que eu precisava."
Renê começou a praticar natação como fisioterapia, mas diz que "o espírito competitivo aflorou" e o levou a competições.
Em 2012, quando conheceu o remo, faltavam apenas quatro anos - menos do que é considerado necessário para formar um atleta de alto rendimento com chances de medalha - para os Jogos do Rio. Mas ele decidiu que iria participar.
"Precisei de uma programação mental do que fazer para chegar lá. O primeiro passo foi uma pós-graduação em Medicina do Esporte para aprender sobre condicionamento físico e treinamento esportivo", conta.
Dois anos e uma troca de clube depois, comprou um simulador de remo para treinar também em casa.
"Por conta de brigas políticas do meu primeiro clube com a CBR (Confederação Brasileira de Remo), saí de lá e tive que recomeçar do zero. Muitas vezes não conseguia ir para um local de treino. Treinei mais no simulador do que na água."
Geladeira e colchão
Na água, na praia da Ribeira, em Salvador, as condições de treino não eram muito melhores. "Como a gente rema de costas, não vê e pode bater em lixo, em barcos. Já me deparei com cama, colchão, geladeira, guarda-roupa, resto de embarcação", diz.
"Quando brincavam comigo dizendo que no Rio eu remaria na sujeira (das águas cariocas), eu respondia que nesse aspecto eu estava bem condicionado."
Em 2015, depois de conseguir os melhores tempos do Brasil na categoria e 20 dias antes de seu segundo campeonato internacional, um acidente quase o impediu de participar.
"Por causa da marola criada por uma lancha, meu barco virou e eu fiquei mergulhado de cabeça para baixo, tendo que desatar três faixas que me amarravam. Fraturei uma costela."
Ainda em recuperação, ele participou da competição e garantiu, com o 7º lugar, a vaga brasileira na Paralimpíada um ano antes dos Jogos, algo inédito na sua categoria.
"É um momento que fica na memória. Tive a sensação de que meus sonhos eram possíveis".
Em seguida, Renê foi campeão brasileiro. Tudo isso, afirma, sem usar o barco oficial, que só chegou cerca de dois meses antes dos Jogos.
'Apelação'
Depois de conhecer o circuito internacional de sua modalidade e o preparo dos atletas estrangeiros, Renê diz ter se sentido "um pouco injustiçado".
"Dentro do que eu tinha de armas, lutei da melhor forma possível. Mas sei que tenho potencial para conseguir mais."
A promessa do governo estadual de conseguir um contêiner, um píer e uma lancha pequenos para poder guardar seu barco e treinar na Lagoa de Pituaçu, em Salvador, ainda antes da Paralimpíada, ficou em suspenso por questões burocráticas.
Pensando no futuro, Renê lançou uma campanha de financiamento coletivo na internet - opção já usada por outros atletas paralímpicos e olímpicos para conseguir viver do esporte.
"Eu hesitei em lançar a campanha, me dava uma sensação de estar apelando ou mendigando", admite. "Mas era para eu ter feito isso há muito mais tempo. Por um lado, foi bom, porque quando alguém ajudava, eu tinha também o estímulo de saber que aquela pessoa acreditava em mim."
Em cerca de dois meses, no entanto, a campanha arrecadou apenas R$ 13 mil da meta de R$ 40 mil.
Lição
Enquanto não define se continuará no esporte paralímpico em 2017, o atleta se prepara para concluir outra especialização médica e para o nascimento da segunda filha.
Já seu filho mais velho, Artur, de sete anos, ainda se acostuma com o sucesso. "No início da Paralimpíada ele tinha ciúmes das crianças que queriam tirar foto comigo. Sentava no meu colo e não queria sair. Agora, sinto que está superorgulhoso", diz Renê.
Talvez à semelhança do pai, Artur também é competitivo e teve dificuldade em entender por que ele era ovacionado mesmo sem ter conquistado a medalha.
É uma lição, diz Renê, que os dois estão aprendendo juntos.
"Ele me perguntou: 'Pai, você não chegou em primeiro. Por que o pessoal está feliz e gritando seu nome?' Eu respondi: 'Isso é o maior evento do mundo, filho. Só estão os melhores aqui'."
*Colaborou Renata Mendonça, da BBC Brasil no Rio de Janeiro
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