Herval Peixoto e Lucas Landau
Toda quarta, o dia de trabalho do agricultor Hélio Tavares começa mais cedo do que habitual na roça, onde mora e trabalha, em Paty dos Alferes, região serrana do Estado do Rio de Janeiro. Às 3h, Hélio já está na estrada com seu Fiorino carregado com cerca de 20 cestas de produtos orgânicos para entregar na capital — onde chega às 6h e trabalha até às 15h. As cestas, na verdade, são bolsas retornáveis de nylon que reúnem de 3kg a 5kg de diferentes alimentos plantados no sítio do Hélio e de outros agricultores da região.
Contrariando a crise econômica que abala o mundo em pandemia, Hélio viu suas vendas aumentarem nos primeiros meses de quarentena. "A maior parte dos alimentos que distribuo é daqui de casa. O que eu não tenho, levo dos amigos e viabilizo também para os que não têm condição de transporte. A gente se organizou nesse sentido", relata o agricultor de 36 anos. Hélio viu no delivery a alternativa para escoar a sua produção, ajudar outros agricultores locais e suprir uma carência em outra cidade, devido ao fechamento de circuitos de feiras de orgânicos.
Lucas Moya, membro de um grupo de distribuidores de produtos orgânicos em Brasília, viu a venda de seus produtos diminuir na feira e aumentar com o delivery. "Nossas vendas cresceram bastante. A pandemia nos fez ampliar nossa área de entrega e, consequentemente, aumentar os dias de entrega. No início foi uma loucura, mas estamos dando conta. Estamos mais organizados e conseguindo atender a demanda que continua alta. A pandemia afetou positivamente o nosso negócio", afirma Lucas.
Essa organização dos agricultores familiares que já trabalhavam com feiras é fundamental para se adaptar a essa nova logística do setor durante a pandemia do novo coronavírus, garante Rogério Dias, presidente do Instituto Brasil Orgânico. Segundo Rogério, as entregas em domicílio são uma solução melhor para aqueles produtores que já tinham um processo organizativo, como os que trabalhavam em feiras, e para quem oferecia diferentes produtos de pronta entrega.
O fim das feiras
A princípio, o grande problema para os agricultores rurais foi o fechamento das suas principais vitrines, as feiras livres, por conta das medidas para conter a transmissão do vírus. Para muitos, essa era a principal forma de relacionamento com o público. Outro complicador foi a suspensão das atividades escolares. Muitos produtores que abasteciam a alimentação da merenda foram prejudicados. A saída, para quem pôde, foi oferecer a entrega a domicílio.
A produtora Inês Scarpa Carneiro, 69 anos, de Cosmópolis, em São Paulo, viu suas vendas caírem em 80%. A principal forma de escoar sua pequena produção sempre foi através de feiras, que, de um dia para o outro, foram fechadas. A forma que encontrou para superar, foi passar para o filho a responsabilidade de implementar uma nova forma de vendas, por entregas.
"Quem assumiu (as vendas) foi meu filho e ele está fazendo entregas de cestas. Está nos ajudando muito. Meus amigos que são grandes produtores foram muito prejudicados, com muitas sobras, e estão doando - o que não é nosso caso", explica Inês.
Esse cenário de dificuldades na produção pela diminuição da demanda fez com que a agricultora Sabrina Magaly Navas, de Brasília, interrompesse totalmente a produção de sua pequena empresa no meio da pandemia.
"De maneira geral, o movimento diminuiu. A perda de espaços de comercialização como lojas, feiras e também a diminuição de acesso a supermercados afetou a venda de produtos orgânicos e/ou agroecológicos. Algo que ocorre também com restaurantes e bares, que as vezes compram insumos de agricultores e cooperativas", conta Sabrina, que aguarda o setor melhorar para voltar a produzir.
Em diversas centros urbanos do país, as feiras livres tiveram regras de funcionamento mais restritas ou foram canceladas. Em relatório da Mintel, agência internacional que fornece pesquisas e análises de mercado, dados do último abril mostram que 79% da população brasileira reduziu as idas aos supermercados. Junto a isso, parte da população teve queda do poder aquisitivo com o impacto econômico da pandemia. Dados da pesquisa do Organis do ano passado mostram que o preço considerado elevado é o principal motivo pelos quais as pessoas não consomem produtos orgânicos (43%).
As adaptações nas feiras se tornaram uma realidade em diversos municípios pelo Brasil. A livre circulação, com clientes colocando a mão nos produtos, não poderia acontecer neste momento. Em cidades com São Paulo e Rio de Janeiro, algumas feiras se tornaram algo similar a um drive-thru, em que as pessoas realizavam com antecedência a encomenda, os produtores deixavam separado e as pessoas passavam para buscar. Essa foi uma alternativa para quem não quis receber os produtos em casa.
O aumento da demanda
No município de Miguel Pereira, vizinho a Paty dos Alferes na serra do RJ, a pandemia do covid-19 pouco impactou nos negócios agrícolas da região. Inalva Mendes Brito, professora aposentada, de 74 anos, não cultiva com as próprias mãos, mas é uma incentivadora da produção orgânica. Promoveu a divisão de sua terra para a formação de uma agricultura familiar formada por quatro pessoas. Há uma rotatividade constante, sempre renovando esse ciclo. Mas, todos os dias há alguém produzindo.
"Quanto à pandemia, parece que não chegou aqui no campo. Pelo menos, aqui na área que nós habitamos que é na montanha, e não é uma área muito isolada, é uma área até meio cidade, meio rural. A gente escuta sobre os impactos da pandemia, mas por aqui a produção só aumentou", diz dona Inalva, que também fornece produtos orgânicos para as cestas que o Hélio entrega no Rio de Janeiro.
Apesar da pandemia, a agricultora Ana Rita, de São Sebastião da Bela Vista, Minas Gerais, também continua em atividade. Ela realiza duas feiras por semana, às quartas e sábados, seguindo as recomendações sanitárias. E faz entregas à domicílio em Varginha, às quintas-feiras.
"As vendas não diminuíram. Na verdade, houve aumento na procura por nossos produtos. Estamos produzindo mais. Na feira todos tomam muito cuidado. Distanciamento, máscaras. Preferimos pagamento por cartão, para evitar dinheiro vivo, e muito álcool 70% à disposição de todos", conta Ana.
O também mineiro José Antonio de Souza, mais conhecido como Neguinho, da cidade de São Sebastião da Bela Vista, reforça a ideia. A produção de Neguinho segue normal, e, pelo que ouviu de colegas agricultores, a procura aumentou entre eles também. Para ele, a pandemia de nada atrapalhou, muito pelo contrário. "As pessoas estarem em casa foi uma condição para que buscassem produtos mais saudáveis", confirma Neguinho.
Consumidor consciente: a engrenagem
Um dos clientes cariocas de Hélio, o consultor de gestão empresarial Humberto Renato Silva Brantes, morador da Freguesia, começou a consumir regularmente orgânicos a partir de setembro de 2019. Ele encara como uma oportunidade de ter uma alimentação mais fresca e saudável.
"Durante a pandemia continuamos consumindo. Inclusive aumentamos o consumo. Passamos a dar preferência aos produtos orgânicos por ter mais tempo para cuidar da alimentação diária em casa", conta Humberto.
A professora de ioga Cristina de Mello Souza, moradora de Copacabana, também é cliente do Hélio. Ela passou a consumir e comprar produtos orgânicos há mais de seis anos.
"Antes da pandemia, eu ia a algumas feiras no meu bairro, mas depois migrei para as entregas do Hélio. Acho que quando compro de pequenos produtores, estou ajudando a transformar a realidade desses profissionais que lutam para manter seus produtos no mercado e com a concorrência de grandes produtores", explica Cristina. Quando terminar a pandemia, ela pretende continuar adepta do sistema de entregas em domicílio.
Ascensão
Um estudo do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), realizado antes da pandemia e publicado em fevereiro deste ano, confirma que o setor de orgânicos no país está em uma crescente. De 2010 a 2018, o setor evoluiu aproximadamente 17% quanto ao número de produtores especializados no alimento orgânico.
Segundo dados da Organis (associação sem fins lucrativos baseada em Curitiba, que trabalha para divulgar os conceitos e as práticas orgânicas), o setor de produtos orgânicos faturou R$ 4,6 bilhões no Brasil em 2019, ou 15% acima do ano anterior.
O pesquisador Lucio Lambert, mestre em Agricultura Orgânica pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), entende que é difícil traçar um panorama no Brasil, porque existem diversos fatores e características que podem alterar as realidades regionais quanto aos orgânicos. Mas, de modo geral, ele analisa que a demanda dos orgânicos vem crescendo nos últimos anos e, com a pandemia, cresceu ainda mais. Segundo Lambert, isso ocorre por que as pessoas passaram a dar mais valor à saúde e estão mais tempo em casa, se arriscando na cozinha.
Sara Fazito conecta pequenos agricultores do Sul do país com consumidores do Rio de Janeiro, onde mora. Ela também faz parte de um coletivo ligado às questões alimentícias, a Junta Local. Sara trabalha com os processados (arroz, feijão, farinhas, sementes, grãos, sucos) e viu seu negócio crescer antes de o vírus chegar. E, apesar das mudanças impostas pela pandemia, ela continua otimista com o setor.
"Entre as principais mudanças, depois do início da quarentena, observo que a minha demanda basicamente triplicou, mesmo sem as feiras — que eram meu melhor canal de venda. Percebo que este movimento decorre de alguns fatores: com a pandemia as pessoas passaram a dar mais importância para a saúde, optando por alimentos limpos, livres de agrotóxicos e pesticidas (...). Além disso, com o confinamento, tem-se passado mais tempo fazendo a própria comida, o que leva à procura de ingredientes de maior qualidade e boa procedência", observa Sara.
Políticas públicas
Quanto às políticas públicas, dona Inalva, produtora de Paty dos Alferes, enxerga que há uma grande ausência delas no Brasil. "Segurança alimentar sequer (existe), nunca se trabalhou nisso nos espaços públicos, por exemplo, na escola", avalia.
Bela Gil, chef de cozinha e defensora da alimentação saudável e consciente, acredita que o fator que faz a divergência ser muito grande entre os produtores que aumentaram suas rendas para os que precisaram interromper ou descartar suas produções é a ausencia do Estado.
"A gente precisa de políticas públicas para garantir a renda desses agricultores e comida na mesa de quem precisa. Desde 2003, os programas como PAA (Programa de Aquisição de Alimentos) vem perdendo muito dinheiro e valor. Em um momento como este, durante uma pandemia, a gente vê como faz falta um programa que ajude o agricultor", opina Bela.
Para Rogério Dias, do Instituto Brasil Orgânico, aconteceram avanços nas políticas públicas, como quando se estabeleceu 30% da agricultura familiar, preferencialmente orgânica, no Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e no Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Mas defende mais apoio ao setor, especialmente neste momento em que os agricultores estão sofrendo com os impactos da pandemia e sem poder fornecer a escolas e a parte dos restaurantes.
Em Brasília, ainda está em tramitação, quase quatro meses depois da primeira morte por covid-19 no país, um projeto de lei na Câmara dos Deputados que busca criar medidas emergenciais em apoio à agricultura familiar enquanto perdurar a pandemia. Esse pacote de medidas urgentes incluiria, além do fomento às atividades de agricultura familiar, condições especiais na oferta de crédito, a criação do Programa de Aquisição de Alimentos Emergencial (PAA-E) e soluções para o endividamento desses agricultores familiares.
''É muito importante lembrar que 70% ou mais da comida que chega na nossa mesa vem da agricultura familiar. (...) Falta enxergar na agricultura familiar a fonte de produção de alimentos para a população", opina Bela Gil.
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