Em situação de rua há três anos, José Isaías precisou abandonar a casa onde morava em Fortaleza, construída com as próprias mãos
Fonte:Por Theyse Viana, theyse.viana@diariodonordeste.com.br
Sonho de José parece óbvio em se tratando de quem vive sem teto: ter uma casinha construída com as próprias mãos.FOTO: FABIANE DE PAULA
Se as ruas são casas e nelas vivem famílias, as mesmas vias sem endereço que abrigam Jesus há 14 anos se tornaram cômodos para José há três. Novato na vida incerta da falta de teto, mas veterano de vivências, o ex-pedreiro José Isaías da Conceição acumula 58 anos de idade e um punhado denso de frustrações – por causa de conflitos alimentados pela violência urbana, ele foi expulso da residência que construiu para viver, calejando as mãos no cimento grosso, e encontrou um viaduto de Fortaleza como destino possível para passar os dias.
A migração de uma comunidade na Praia do Futuro para um barraco à beira de uma das vias mais movimentadas da Capital, a Avenida Antônio Sales, se deu a pedido da mãe, única consanguínea de quem sente falta – porque dos quatro filhos que teve com a ex-companheira, não tem contato com nenhum. “Nunca me ajudaram nem ligaram, por que eu vou sentir?”
das pessoas em situação de rua em Fortaleza apontam a quebra de vínculos familiares como motivo para desabrigo, de acordo com o único censo feito pelo Poder Municipal sobre o assunto, em 2015
O nome da genitora, inclusive, é anotado com a letra dela em uma caderneta amassada, junto ao dele e à data de nascimento, único “documento” sobre si que guarda – meio ao qual recorre para calcular a idade, quando é questionado. O papel já foi levado a órgãos públicos em busca de obter novas vias dos documentos que roubaram, mas sem sucesso. Para alguém em situação de rua, uma anotação manuscrita não é papel de existir.
Sustento
Assim como Jesus, o Maciel, José, o da Conceição, se encobre de religiosidade e fé – em si, em Deus e na bondade alheia – para enfrentar a vulnerabilidade de todos os dias. “Às vezes me dão um trocado e compro uma quentinha. Outros me dão a própria quentinha ou uma cesta básica, aí faço fogo ali e cozinho”, descreve, apontando para os quatro tijolos já pretos de tão queimados, unidos aos galhos secos para fazer vezes de fogão.
“Feijão, merenda e cachacinha”, aliás, só mesmo se forem frutos da caridade, já que a carrocinha de reciclagem que gerava a renda de José está “no prego”. “Preciso de uma ajuda, porque não consigo mais trabalhar. Você vê eu novo desse jeito, mas com uma doença que, se eu me operar, não posso trabalhar”, lamenta, referindo-se ao único problema de saúde que lembra ter adquirido na rua.
“Graças a Deus, até agora, o Senhor não me deixou adoecer aqui. Mas tenho uma hérnia que dá um nó na minha barriga. Eu preciso suspirar e levantar os braços pra ela desmanchar e não me estrangular por dentro. Eu tenho uma morte dentro de mim, e nunca fui no médico”, diz José, assumindo o medo de cirurgia.
Sonho
O temor, aliás, não é o único sentimento que enfrenta diariamente – José aprendeu, pela dor, a ter medo de gente. “Já passei tanta coisa boa na minha vida, desde novo. Mas foi na rua que conheci o que é sofrimento. O pessoal passa e grita pra me acordar, buzina… A gente tira de letra as piadas que escuta todo dia. De noite é meio brabo, 4h é que eu vou pegar um sono, porque tem que ficar acordado”.
Se, de um lado, o desrespeito dos que têm tudo menos compaixão assusta; do outro, a esperança acalenta. “E eu tenho muita! Eu tenho um sonho que é uma casinha, um barraquim pra mim morar. Só um vãozim tá bom demais pra mim. Se eu tivesse um lugar, com a pouca energia que eu ainda tenho, teria condições de construir minha casinha, eu mesmo. Porque aqui eu já sofri demais. E ainda sofro”, diz, menos com a boca e muito mais com os olhos marejados, um José que parece ter sido descrito por Drummond antes de nascer.
E agora, José? (...) / Sozinho no escuro / qual bicho-do-mato, / sem teogonia, / sem parede nua / para se encostar, / sem cavalo preto / que fuja a galope, / você marcha, José! / José, para onde?”
Assistência
O número estimado de pessoas em situação de rua em Fortaleza, em 2015, era de quase duas mil, segundo a Prefeitura. Apesar disso, a Capital conta, atualmente, com apenas três unidades de acolhimento institucional, nos bairros Jacarecanga, Presidente Kennedy e Benfica. Cada uma disponibiliza 50 vagas, funcionando 24h com acesso a refeições. Além disso, também há uma Casa de Passagem, para acolhimento em tempo curto; uma Pousada Social, no Centro; e dois Centros de Referência Especializados para População em Situação de Rua (Centros Pop), que atendem cerca de 80 pessoas diariamente com serviços multidisciplinares e refeições.
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