Esgarçando a fronteira entre realidade e ficção, "Baronesa" se sobressai pela narrativa crua de um Brasil esquecido e marginalizado pelo poder público
FONTE:DN/CADERNO3
por Antonio Laudenir - Repórter
Estreando nas salas de cinema brasileiras hoje, "Baronesa" ilumina o cotidiano de duas mulheres moradoras da periferia de Belo Horizonte. Essa informação, entretanto, pouco interfere no processo de imersão da obra. Andreia e Leid, as personagens, se enquadram perfeitamente na realidade da maioria das mulheres que habitam os centros urbanos do País.
Juliana Antunes, diretora e roteirista, estreia na direção de um filme com verdadeiro sangue nos olhos e transmite toda a provocação inicial responsável por lhe inserir neste projeto. Quem são estas mães e filhas presas a um violento e imutável universo e como resistem diante de tantos dilemas?
Ambas as trajetórias contadas por Juliana refletem sobre os sonhos e esperanças de duas jovens. Andreia deposita fichas na oportunidade de construir uma casa em outra comunidade, em tempo, a "Baronesa" do título. A seu lado, Leid e os filhos vivem à sombra de um marido e pai ausente por conta da prisão. Em comum a elas, a necessidade de se desviar cada vez mais da guerra do tráfico que assola o lugar onde sobrevivem. Uma busca diária por evitar as consequentes tragédias trazidas com este mundo.
Após se mudar para Belo Horizonte, em 2008, a cineasta percebeu que a capital mineira tinha vários bairros com nome de mulher e a maioria deles tinha como destino a periferia. Partindo dessa inquietação, Juliana passou a pesquisar mais sobre as histórias desses pontos da cidade. O interesse por tornar esta experiência em filme tomou corpo ainda na universidade. Com o apoio das amigas Marcela Santos e Giselle Ferreira, a cineasta partiu na busca de mulheres interessadas em fazer um filme, simplesmente.
Essa fase de prospecção de narrativas foi fundamental para a imersão no tema. Andreia, inicialmente, mostrou-se reticente em participar do longa. Essa percepção mudou quando a diretora lhe apresentou parte de um material já filmado anteriormente. O sim veio com uma condição: a cineasta devia mudar-se para a favela.
Assim, a realizadora alugou um barraco de 30m² e lá ficou por seis meses, onde recebia visitas semanais da equipe. Até chegar aos cinemas como vemos hoje, esse processo demandou seis anos na vida de Juliana.
Misoginia
O roteiro, descreve Juliana, era escrito diariamente, muito em função dos acontecimentos imprevisíveis da vida na periferia. Além dos embates entre os traficantes locais, outro dilema responsável por alterar os destinos do trabalho foi a intervenção de maridos, irmãos e namorados que tinham a palavra final sobre a participação das mulheres no filme. "Não cheguei na favela com 90 páginas previamente escritas e fiz um filme. Teve as vivências delas naqueles momentos", observa.
As lentes de Juliana entregam diferentes e delicados instantes. Misérias como violência sexual, morte e a falta de perspectivas daquelas pessoas são contadas através do tom assumidamente documental escolhido por ela. Extremamente crus e explícitos, os fatos são desenrolados e chocam pela naturalidade dos atores. Protagonizado, dirigido, roteirizado e produzido por mulheres, o filme amplia e permite outras perspectivas sobre a força feminina na periferia brasileira.
Diante de tempos tão sombrios, no tocante a como os brasileiros lidam com perspectivas mais humanas de interação com o próximo, em especial com as minorias e comunidades pobres, "Baronesa" segue como um retrato amargo de nossa própria decadência. Mesmo com uma possível leitura de esperança nos minutos finais do filme, esse sentimento segue emoldurado por uma realidade avassaladora e cruel.
Feito com recursos que serviriam para produzir um curta, a obra de Juliana Antunes dá o recado sem floreios ou necessidade de maiores explicações. Está na tela e qualquer deficiência de interpretação ou leitura da mensagem contida neste longa-metragem significará um mau-caratismo hediondo. Ainda temos muito por evoluir.
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