Os diálogos entre Pilatos e Jesus giram em torno dos títulos concedidos a Jesus. As autoridades judaicas levam Jesus perante a autoridade romana (18.28-19.16a) para que essa julgue “corretamente” o fato de um homem do povo judeu ser chamado de “rei dos judeus” ou “Messias” e “Filho de Deus”. Esses dois títulos conferidos a Jesus são apresentados nos quatro evangelhos.
Chama a atenção que esse interrogatório acontece dentro e fora do Pretório (local dos processos judiciais). Conforme João 18.28, a conversa de Jesus com Pilatos acontece dentro do palácio do governador romano. Mais tarde, numa segunda conversa (Jo 19.8-12), o tema gira em torno da origem de Jesus e de seu poder. Interessante é observar que os judeus que acusam Jesus não entram no palácio: todas as acusações são feitas do lado de fora do mesmo. Isso se deve ao fato de que naquela noite os judeus iriam celebrar a Páscoa e assim não deveriam estar contaminados, impuros, por entrar num ambiente “pagão”. É o governador que sai e vai ao encontro deles. Entregam Jesus sob a alegação: “Se não fosse esse homem um malfeitor, não o entregaríamos”. Ao invés de uma acusação concreta sobre a pessoa de Jesus, surge uma afirmação imprecisa: ele é um malfeitor. Dessa forma, o julgamento do “mundo” sobre Jesus já está feito. No Evangelho de João, o processo de Jesus torna-se objeto de interesse público.
Pilatos não deseja se envolver na questão que lhe é trazida. Pede às autoridades judaicas que julguem, elas mesmas, o caso, conforme “a vossa lei”. Mas essas não aceitam e afirmam ser esse um caso de blasfêmia e subversão, o que também diz respeito ao Estado romano; por isso exigem uma posição. Os judeus não querem aplicar a sua lei, pois anteriormente é expresso “não nos é permitido matar ninguém” (Jo 18.31b). João deixa claro que a jurisdição dos judeus era limitada, sendo que podiam instituir processos segundo a lei judaica, emitir sentenças, porém não podiam executar a pena capital. Pilatos não deseja se envolver diretamente no caso e tenta dar uma solução que lhe trará menos problemas, devolvendo a questão para os judeus e, no fim, lava suas mãos como expressão de indiferença e fuga da verdade.
Pôncio Pilatos executa um interrogatório para saber qual é a culpa de Jesus. Esse alto funcionário do Estado romano passa a fazer parte da história do cristianismo, sendo até mencionado na confissão de fé (Credo Apostólico). Ele foi enviado como procurador para a Judeia durante o governo de Tibério e exerceu o poder durante dez anos (26-36 d.C.). Era conhecido por agir em seu governo com tirania, corrupção, crueldade, sendo citado por Filon como “de natureza inflexível, obstinado e duro” (BLANK, 1991, p. 68).
A iniciativa da prisão e morte de Jesus partiu dos sumos sacerdotes e saduceus. Porém a autoridade romana, na pessoa de Pôncio Pilatos, tinha em suas mãos a responsabilidade do supremo poder de decisão. Ele proferiu a sentença de morte contra Jesus. Nos evangelhos de Lucas e João, há a tendência de culpar mais as autoridades judaicas do que Pilatos na sentença de morte de Jesus. Sabe-se, porém, que Pilatos não ajudou Jesus em seus direitos, mas decretou uma sentença de morte injusta ou pelo menos consentiu com ela.
Eis que começa o diálogo. Pilatos pergunta: “Tu és o rei dos judeus?”. Essa pergunta é a mesma nos quatro evangelhos, bem como a resposta de Jesus: “Tu o dizes”. A diferença do Evangelho de João para os outros é a interseção (v. 34-36) que há entre a pergunta de Pilatos (v. 33) e a resposta de Jesus (v. 37b). Também há uma diferenciação no que diz respeito à interpretação da resposta, texto próprio do discurso joanino (v. 37b).
Pilatos acolheu a acusação dos judeus (v. 34 e 35), pois acusaram Jesus de ser pretendente a Messias, sendo acusado de “rei dos judeus”. Pilatos não o chama de rei de Israel, mas rei dos judeus, demonstrando assim desprezo e desrespeito para com o povo que esperava ardentemente a vinda do rei libertador, o Messias (Jo 1.49; 12.13; 6.14). A autoridade romana sabe que a pretensão de querer ser o “rei dos judeus” não é motivo para condenar Jesus e pergunta: O que fizeste? (v. 35b). Sabe que precisa de um fato jurídico palpável. Talvez Pilatos esteja inclinado, a partir dessa pergunta, a considerar Jesus realmente inocente. Agora Jesus pode expor seu próprio conceito de “rei” e “realeza”. Jesus passa a dar seu testemunho e afirma: “Meu reino não é deste mundo”, ou seja, sua origem não se baseia numa constelação de poder humano-política, mas está totalmente radicada na esfera divina.
Jesus não responde se é rei ou não, ele não entra no jogo de Pilatos, pois sabe que Pilatos e as autoridades judaicas entendem o reinado como extensão da política humana, sedenta pelo poder opressor e dominador. Jesus não é esse tipo de rei. Por isso diz que seu reinado não é deste mundo, fazendo alusão ao mundo de cima (reino de Deus) e ao mundo terrenal (reino humano), conforme João 8.23.
O reinado de Cristo sobre a humanidade é o tema central de nossa perícope. Esse texto possui paralelo com os sinóticos: Marcos 15.1-5, Mateus 27.11-14 e Lucas 23.2-5. Porém o diálogo a respeito da verdade é exclusivo do Evangelho de João. Interessante é observar que algumas palavras se repetem no texto e dão uma entonação sobre o sentido do mesmo. Aparecem três vezes as seguintes palavras: basileia (reino), basileus (rei), kosmos (mundo), aleteia (verdade).
No Evangelho de João, não aparece a expressão “reino de Deus” assim como nos outros evangelhos, mas aparece com frequência a afirmação de Jesus: “meu reino não é deste mundo”, afirmando assim que sua realeza não depende do poder mundano, mas de Deus somente.
Pilatos não entende esse reinado que Jesus veio inaugurar, que transcende o poder político corrupto. Pilatos deseja que Jesus se confesse como messias político meramente. Jesus nunca designou a si mesmo como “messias”, em grego, christos, palavra derivada do verbo chrio (ungir) e tradução do hebraico mashiach (ungido). Pilatos só pensa em defender o seu território e poder opressor e afirma: “Então tu és o rei?”. E Jesus responde, sem desmentir a formulação de Pilatos, pois essa contém parte da verdade: “Tu o dizes”. E segue falando sobre sua missão: “Eu vim para dar testemunho (martireso) da verdade, e quem está do lado da verdade, aquele que é da verdade, escuta a minha voz” (confira Jo 10.16: as ovelhas conhecem a voz do bom pastor).
Sua realeza demonstra-se no serviço ao próximo, a fim de promover vida, abrindo mão do poder que escraviza e oprime. A realeza de Jesus quer ser reco¬nhecida neste mundo, mas não segue as regras do jogo dos poderosos. Sua opção é ser rei para servir e doar-se em favor do mundo. Aderir ao reino que Jesus propõe é aderir à verdade, não significa fugir deste mundo, de seus conflitos e opressões, mas lutar baseado na verdade para que haja justiça, libertação, solidariedade, responsabilidade e compromisso, vida plena. E a verdade liberta aqueles que aderem ao projeto do reino de Deus, que não vai ser inaugurado neste mundo, mas no eon vindouro, no novo céu e na nova terra (Ap 21).
Pilatos está preso à forma de pensar o mundo como ele mesmo conhece, fundado na mentira, opressão, desrespeito, falsidade. Não está apto a abrir-se à verdade que liberta e promove vida, assim como as autoridades judaicas também não estão. Pilatos termina o interrogatório de Jesus com uma pergunta lançada no ar: “A verdade, o que é a verdade?”. E, ao deixá-la no ar, dá a entender que é a sua verdade, a sua forma de pensar que vai imperar, pois ele não está interessado em saber a versão de Jesus e aprender dele. Está fechado para a verdade que liberta. Prefere aderir à “verdade” cômoda que lhe confere status, poder e domínio. Ao finalizar o interrogatório, Pilatos vai para fora e dá uma satisfação às autoridades judaicas, afirmando não ver nenhum motivo para condenar Jesus.
Meditação
Esses dois temas devem estar bem presentes na pregação do último domingo do ano eclesiástico. Jesus pretende instaurar seu reino neste mundo, mas não da forma como este mundo pensa e vê a realidade. Jesus quer instaurar sua realeza de Rei servidor com o testemunho da verdade e com a prática da não violência, da justiça, da lei do amor ao próximo, inclusive aos inimigos. É um reino que não é deste mundo, mas está neste mundo e nele deseja proclamar suas exigências. Ao proclamar sua realeza (v. 36), Jesus o faz em forma de testemunho (martiria). Não se trata de um “conhecimento” somente, mas de uma “confissão de fé” que perpassa toda a sua vida e forma de ser. Isso nos conduz ao segundo tema da pregação: a verdade.
Quem de fato vive e testemunha a realeza de Cristo neste mundo dá testemunho da verdade. E ela é parâmetro para a ação de “reinados mundanos”. A pergunta que Pilatos faz: “O que é a verdade?” leva a crer que ele mesmo não tem conhecimento nenhum da verdade e adia sua decisão final, demonstrando ter se tornado um mero instrumento nas mãos de autoridades locais. Pilatos somente poderia conduzir bem o processo contra Jesus se estivesse pautado na justiça, sendo neutro e tolerante, assumindo a posição que se coloca à disposição da exigência da verdade, sendo que Jesus mesmo afirmou:
“Eu sou o caminho, a verdade e a vida”.
Somente essa verdade é capaz de libertar todos os seres humanos. Jesus, em todo o seu ministério, deu testemunho da verdade e opôs-se à mentira que gera a incredulidade e a não aceitação do amor e da graça de Deus neste mundo. Estar aberto à verdade, dar testemunho somente dela e não de meias-verdades ou de “nossas verdades” é o desafio enquanto ainda estamos neste mundo.
A celebração deste domingo deverá conduzir a comunidade para o testemunho da verdade que liberta de cegueiras e miopias espirituais e abrir as vistas e os corações para o reinado daquele que veio nos servir e ensinar o caminho do amor que produz vida plena.
Fonte: Texto de Cristina Scherer, publicado no portal Luteranos.
via/RC
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